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A contagiante história da sífilis

Artigo do cirurgião dentista e estomatologista Prof. Assoc. Jayro Guimarães Jr.
Um pastor certa vez teve  esse mal-estar, e Syphilus é seu nome [...].
Primeiro ele teve bolhas de aparência horrível, [...] teve dores estranhas e passou noites em claro. Dele a doença recebeu seu nome, os pastores das vizinhanças apanham a chama devastadora. Finalmente na cidade e na corte ela foi conhecida, e atacou o monarca ambicioso no seu trono.
Trechos de “Syphilis sive morbus gallicus” (Sífilis  ou a doença francesa), poema escrito, em 1530, por Hyeronimus Frascatorius.  

 A sífilis é uma doença infecciosa causada pela bactéria Treponema pallidum. Podem se manifestar em três estágios. Os maiores sintomas ocorrem nas duas primeiras fases, período em que a doença é mais contagiosa. O terceiro estágio pode não apresentar sintoma e, por isso, dá a falsa impressão de cura da doença.

Todas as pessoas sexualmente ativas devem realizar o teste para diagnosticar a sífilis, principalmente as gestantes, pois a sífilis congênita pode causar aborto, má formação do feto e/ou morte ao nascer.
A história da sífilis é interessante, folclórica e, ainda, polêmica.

Foi citada sua presença na China e no Japão principalmente nos séculos XIII e XIV.
Para um grande número de estudiosos seria endêmica na América Central, notadamente no Haiti, e levada para Europa por quarenta e quatro marinheiros espanhóis, que, ao serem dispensados por Colombo, se uniram às tropas de Gonzalo de Córdoba e, mais tarde, se juntaram ao exército “francês” de Carlos VIII que começou a invadir a Itália no outono de 1494.

Junto com o navegador genovês vieram dez nativos americanos (dos quais um morreu tão logo desembarcou), que voltaram para Europa com Cristóvão Colombo no ano de 1493.
O exército de Carlos VIII, constituído por 3.000 homens, não era de fato francês, mas composto por mercenários franceses, alemães, suíços, ingleses, húngaros, poloneses e espanhóis.

Em fevereiro de 1495, este exército mercenário começou a realizar o cerco da cidade de Nápoles.
A queda da cidade, ocorrida no mesmo ano, deu início às orgias que teriam levado à disseminação da infecção sifilítica aos seus participantes, coincidindo logo a seguir com o primeiro grande surto da doença.

Foi então denominada de “mal gálico, francês ou italiano”.  A volta dos mercenários para seus países de origem contribuiu para a disseminação da doença.

Um dos pontos que suportam esta teoria é que um dos mais primitivos tratamentos para a sífilis, instituído em 1508, feito pela erva santa (“holy wood”) ou guaiaco, era uma resina obtida de duas plantas — guaiacum officinale e guaiacum sanctum— originárias das Américas.

Estes fatos históricos atualmente estão sendo refutados com base em estudos epidemiológicos e clínicos por vários autores entre os quais Luguer, em 1993.

Segundo estas refutações, a doença já estava presente na Europa antes dos tempos do navegador genovês.

O aumento de incidência teria apenas coincidido com a descoberta da América. Este aumento, que foi pandêmico, foi chamado de "great pox" em oposição ao "small pox”.

Outra teoria afirma que a sífilis é originária da África e foi introduzida na Espanha e em Portugal pelos escravos trazidos daquele continente.

Há uma doença chamada framboesia (yaws em inglês, do africano yaw= framboesa) que é bacteriologicamente indistinguível da sífilis, mas que não é transmitida sexualmente.

Uma teoria crê que a sífilis é causada pela mesma bactéria da framboesia africana, adaptada ao clima europeu, mais frio que o africano.

Assim a framboesia e a sífilis seriam diferentes manifestações da mesma doença.

Uma extensão da teoria afirma que não foram os escravos, mas sim negros que chegaram num passado mais remoto ao Egito, Arábia, Grécia e Roma que levaram a yaws para o continente europeu.

As primeiras citações sobre a doença foram escritas pelo famoso poeta italiano, originário de Verona, Girolamus Fracastorius que nasceu em 1483 dentro de uma família de conhecidos médicos. Estudou Medicina em Padova e Belas Artes, Matemática e Astronomia, além de ser naturalista, poeta e filósofo, bem como, excelente enologista. Descreveu diferentes vinhos e suas indicações na medicina. Suponho que experimentou alguns.

Em agosto de 1530, Frascatorius escreveu um poema em elegantes versos hexâmetros virgilianos (versos divididos em seis partes usados por Virgílio), publicado em Verona em três volumes, com o nome “Syphilis sive morbus gallicus”.


A obra fala sobre a origem da doença e descrevia  sua sintomatologia. Relata as desventuras de um jovem pastor Syphilus que, por amar tanto o rei de Alcithous, chegou a dedicar-lhe um culto religioso e a induzir o povo a idolatrá-lo.

Pois é, naquele tempo idolatrava-se governantes.


Atraiu assim a ira dos deuses e recebeu como castigo divino a terrível doença. O pastor foi o primeiro a contraí-la, mas ela se tornou epidêmica.

Em 1546, Fracastorius publicou outro trabalho em Veneza sobre o título “De Contagione et Morbis Contagiosis”, no qual descreve a causa da sífilis e de muitas doenças contagiosas, surgindo como um dos precursores da bacteriologia.

Frascatorius refere-se a um “catarro pernicioso” dos doentes com sífilis que corroía o palato, lábios, úvula e faringe que pode ser considerado como a placa mucosa oral do secundarismo.

Lues, o outro nome para a sífilis, vem do latim lues, ao qual foi acrescentado o adjetivo venereum, quer dizer praga, doença ou pestilência, pois foi considerada como um dos grandes flagelos da civilização no século XVI devido ao grande número de vítimas fatais por ela causada.

No século XVII apareceram os primeiros ensaios em textos pediátricos sobre a sífilis congênita. As crianças com sífilis eram frequentemente abandonadas por causa do medo da transmissão.

Erasmo de Rotterdam (1469-1536) escreveu que todo nobre que não tivesse sífilis uma vez era considerado “ígnobilis et rusticans”.

Em 1579, o cirurgião londrino William Clowes declarou que de cada 20 pacientes admitidos no St. Bartholomew’s Hospital, 15 tinham sífilis (75%!), demonstrando que a doença era muito comum na Londres do século XVI.

A doença afetou muita gente famosa. Entre elas: Carlos VIII e Francisco I (reis da França), o Papa Alexandre Bórgia, seu sobrinho Pedro Bórgia e o Cardeal-Bispo de Segóvia, os artistas Benvenuto Cellini, Èdouard Manet e Toulouse-Lautrec, os escritores e poetas Heinrich Heine, Jules de Goncourt, Alphonse Daudet, Guy Maupassant e Leon Tolstoi, o filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche e os músicos Franz Schubert (sífilis + intoxicação crônica por mercúrio ao tentar tratá-la) e Scott Joplin (autor de ragtime).
Afetou também os tristemente famosos, como o gangster Al Capone e o ditador Adolf Hitler.
Nas casas-grandes dos engenhos brasileiros no período colonial muitos escravos eram, na verdade, descendentes bastardos dos amos.

Os latifundiários, apreciadores das mulatas, trouxeram a sífilis da Europa e a espalharam tão difusamente que já não se considerava as manchas da pele como coisa vergonhosa. Antes, eram distintivos ou medalhas. Ser sifilítico era sinal de macheza ou virilidade.

Assim, como nos conta Gilberto Freyre no seu livro “Casa Grande & Senzala”, uma contaminação em massa verificou-se nas senzalas coloniais brasileiras.
Escreveu ele: “foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues as negras das senzalas.
 Negras tantas vezes entregues virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres da sífilis das cidades. Porque por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem [...] a prostituição doméstica, sempre é mais higiênica que a dos bordéis”.

Freyre relata que “no litoral, isto é, na zona mais colorida pela escravidão, sempre foi larga a extensão da sífilis [...] e os mestres da medicina brasileira recomendam aos discípulos que, em clínica, pensem sempre sifiliticamente, isto é, considerando antes de tudo a possível origem sifilítica do mal ou doença”.

Ainda através de Freyre, sabemos que “no século XVIII já o Brasil é assinalado em livros estrangeiros como terra da sífilis por excelência".

O misterioso Capitão Johnson, provavelmente seria Daniel Defoe, autor da Histoire générale des plus fameux pyrates, de 1726, escreve que “presque tous les brésiliens sont atteints d’affections véneriennes” (quase todos os brasileiros afetados pelas doenças venéreas).

Daniel Defoe foi autor do romance “Robinson Crusoé” e o livro citado sobre piratas seria uma tradução do inglês para o francês.

 Os primeiros ensaios terapêuticos ocorreram entre 1700 e 1837, quando Gerhardt van Swieten (1700-72) e Wallace lançaram as associações mercuriais e o iodo no seu tratamento. Anteriormente, em 1689, os vapores de mercúrio, através de fumigações, eram usados no tratamento da sífilis.

John Hunter (1728-93), um cirurgião inglês, cometeu um trágico erro. Ao tentar provar que a gonorreia e a sífilis tinham origem comum auto inoculou-se com material proveniente de um exsudato uretral. Infelizmente o paciente portava as duas doenças e os desenvolvimentos dos sinais da sífilis em si fizeram com que Hunter pensasse que sua teoria era correta. Hunter pagou o preço do seu erro: morreu de sífilis.

Meio século mais tarde, Philippe Ricord e Jean-Alfred Fournier esclareceram a confusão e separaram as duas doenças.

A divisão da sífilis em três estágios, primário, secundário e terciário, foi feita por Philippe Ricord.  A literatura médica de língua inglesa prefere dividi-la em recente e tardia.
No século XIX, o célebre Jean-Martin Charcot (1825-93), um dos fundadores da neurologia francesa, descreveu o perturbação articular da ataxia locomotora (descoordenação motoroa) provocada pela sífilis que ficou conhecida com "articulação de Charcot".

Jonathan Hutchinson, em 1861, trabalhando no London Hospital descreveu a tríade da sífilis congênita que leva seu nome.
A importância dada à sífilis revela-se no destaque dado por algumas revistas científicas, particularmente as francesas, que apareciam sob a denominação de “Dermatologia e Sifilografia”. O próprio nome da disciplina acadêmica era assim designado.
Elie Metchnikoff e Emile Roux conseguiram transmitir a doenca para macacos, em 1903. Tornaram então possíveis os estudos experimentais da sífilis em modelos animais.
Somente em 1905, Fritz Richard Schaudinn e Paul Eric Hoffmann descobriram o micro-organismo causador da doença que denominaram Spirochaeta pallida. Um pouco mais tarde mudaram o nome pra Treponema pallidum.
Em 17 de maio de 1905, Schaudinn & Hoffmann apresentaram as conclusões de suas pesquisas para a Sociedade Berlinense de Medicina, gerando enorme polêmica e descrença.
John Siegel e seus seguidores engrossaram a ala dos oponentes, defendendo que a doença era causada pelo Citorrhyctes luis, um alegado protozoário anteriormente descoberto por eles, e afirmando que o achado de Schaudinn & Hoffmann não passava de uma sujeira (artefato).
A discussão ficou tão acirrada que o presidente da Sociedade Berlinense de Medicina encerrou a sessão de modo jocoso: "a sessão está encerrada até que um novo agente da sífilis seja encontrado".
Pouco antes da morte de Schaudinn, em 1906, a descoberta da dupla foi reconhecida na Europa, mesmo pelos contestadores anteriores.
Em 1906, August Paul von Wassermann anunciou os resultados dos seus ensaios sorológicos de fixação do complemento para diagnóstico da doença.
Paul Ehrlich (1854-1915), em 1907, deu os primeiros passos para um tratamento mais efetivo da sífilis através de compostos arsênico-benzênicos de sua denominada “bala mágica” a base de arsfenamina.
Constantin Lavaditi. em 1923, apresentou resultados do seu trabalho no tratamento da sífilis à base de bismuto (“Spirocid”).
Um curioso tratamento foi a malarioterapia feita com a contaminação intencional do paciente com o Plasmodium sp. O treponema não resistia à temperatura alta causada pela febre. Julius Wagner von Jauregg ganhou o prêmio Nobel de 1927 por ter descrito a malarioterapia usada contra a "dementia paralytica", ou seja, a neurossífilis.
Em 1932, Gerhard Domagk introduziu a primeira sulfonamida, o prontosil, no tratamento da sífilis.
Em 1928, Alexander Fleming tinha descoberto a penicilina. A droga ficou num certo ostracismo até que foi retomada por Howard Florey e Ernst Chain, em 1940, na Universidade de Oxford, uma década depois,  que a tornaram num agente terapêutico altamente efetivo, após terem transformando o laboratório da universidade numa fábrica de penicilina.
O prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1945 foi dividido entre o trio Fleming, Florey e Chain.
Somente em 1943, durante a Segunda Grande Guerra, John Friend Mahoney e outros, após 15 anos da descoberta da penicilina por em 1928, conseguiram o tratamento específico da doença na sua fase primária (cancro duro) com grande diminuição de sua incidência e prevalência em todo o mundo, quase que a erradicando totalmente.
Publicaram um artigo sob o a referência Mahoney JF, Arnold RC, Sterner S L, Ilayth A, ZwaIIy M R. Penicillin treatment of early syphilis: II. JAMA 126.63-7. 1944.
Como a penicilina era muito eficiente e não tinha efeitos colaterais importantes, os antigos tratamentos foram abandonados.
Os tratamentos iniciais com a penicilina foram feitos primordialmente em soldados convocados para a Segunda Guerra Mundial.
Dos 12 milhões de convocados, 170.000 tiveram que ser tratados da doença antes de serem colocados em serviço.  A partir daí a penicilina tornou-se o tratamento padrão para sífilis, o que continua até hoje.
Em 1932, teve início o tristemente famigerado estudo de Tuskegee. Tão infame que o postarei à parte brevemente.
Em 1949, Robert Armstrong Nelson e Manfred Martin Mayer desenvolveram o teste de imobilização do treponema que comprova a presença de anticorpos contra o Treponema pallidum, que foram chamados de imobilizina.
A história da sífilis mostra que nos E.U.A., em 1918, uma pessoa em cada vinte e duas estava infectada pela doença.
Outra pesquisa relata que neste mesmo país, no início da década de 1940, existia 600.000 infectados e, após 15 anos do surgimento do tratamento pela penicilina, este número caiu para 6.000 por ano que por volta de 1980 houve uma queda para 28.000 casos.
O recrudescimento da doença iniciou-se por volta do ano de 1960 e foi justificado por vários fatores, entre os quais está o uso indiscriminado das pílulas anticoncepcionais, passando pelo grande aumento das viagens internacionais, o que veio possibilitar maior número de parcerias sexuais, sem os cuidados preventivos necessários, provocando uma maior ocorrência de casos.
Cinco novos casos de sífilis em adultos são notificados por dia no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.
Em época de Carnaval, um dos dados levantados pelo Instituto Emílio Ribas é preocupante. A maioria dos pacientes infectados não sabe que a doença pode ser transmitida pelo sexo oral feito sem o uso de preservativo.
O Ministério da Saúde quer eliminar a  existência da sífilis congênita, transmitida verticalmente pela gestante ao recém-nascido durante a gravidez, até 2015.
No levantamento do Emílio Ribas, a maioria dos infectados tem de 40 a 43 anos. De novembro a dezembro de 2011, foram diagnosticados 369 casos de sífilis, dos quais 347 eram homens.
Não existe hoje no Brasil um levantamento preciso sobre incidência de sífilis. O Emílio Ribas, por sua vez, ainda trabalha na compilação de dados de anos anteriores.
Para o Ministério da Saúde brasileiro cerca de um milhão de novos casos de sífilis são registrados a cada ano no Brasil.
Não há um número exato, pois uma série de casos acontece na rede privada de saúde e não são notificados, como em muitas outras doenças.
Os homens conseguem visualizar as lesões com mais facilidade. Nas mulheres, as feridas costumam estar dentro do canal da vagina.
Com o advento da síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA ou AIDS), o aparecimento de novos casos de sífilis diminuiu frente aos maiores cuidados preventivos que estavam sendo tomados para evitar o contágio daquela doença.
Entretanto, após o surgimento dos vários anti-retrovirais, os cuidados foram relaxados e, novamente, em 2012, estamos preocupados com o surgimento de novos casos.
Nota: na foto, a placa mucosa oral, manifestação estomatológica da sífilis secundária (coleção particular). Este é um dos vários aspectos, pois a sífilis é conhecida como a "grande imitadora". Isso pode complicar a hipótese diagnóstica.  É altamente contagiosa tanto para quem trata da boca (nunca deixem de usar luvas), como para quem faça sexo oral ou beija um paciente infectado. Como pode aparecer algo parecido nas mucosas vaginais, este local, também fica contagioso. Na mucosa vaginal, pênis e na boca (lábios e língua) pode também estar o cancro sifilítico (manifestação primária).

Do Estomatologista

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